terça-feira, 09/03/2021
Artista, criadora,
investigadora e ativista. Teresa Fabião encaixa-se na descrição de todas estas
vertentes (e provavelmente outras que não mencionamos). Numa nota de rodapé, é
também portadora do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). A artista esteve
esta segunda-feira com os estudantes de Medicina do 1.º ano, numa conversa
inserida nas aulas de Perfil Académico – juntamente com Luís Mendão -, onde se
procura oferecer experiências diferenciadas e relatos da medicina na primeira
pessoa.
A partilha traz consigo
não só o cuidado do percurso com VIH, mas também como mulher e artista,
contribuindo para o objetivo de uma humanização dos cuidados de saúde e para o
fim da estigmatização (ainda vigente) – como nos disse na conversa posterior à
sessão com os nossos alunos.
A partir do teu artigo
no Público, falas em atualizar conhecimento, na
transformação e no desconhecimento. O desconhecimento é o principal problema
quando falamos em VIH?
Enquanto ainda estamos a
conviver com o vírus, sem uma cura, parece-me que sim. Quem cresceu nos anos 90
ainda teve algum contacto com algumas campanhas relacionadas com o VIH, mas as
gerações que vieram depois de mim, por exemplo, e têm agora 20 e poucos anos,
pouco ouviram falar de VIH.
Parece que ficou ainda mais silencioso.
Claro que os retrovirais
trouxeram imensa qualidade de vida a quem já vivia com o vírus, mas fez também
adormecer o diálogo sobre o VIH – e temos de encontrar um meio-termo porque já
não é uma sentença de morte, mas também não nos podemos relacionar com o VIH
como se fosse uma pílula do dia seguinte. Continua a ser uma condição crónica e
tem de ser levada com seriedade.
Então parece-me que sim,
não só desconhecimento como a falta de diálogo. Se uma pessoa tem conhecimento,
procura informar-se e educar-se, mas depois quando vê discriminação ou vê um
colega a falar mal e não diz nada, continua a ser conivente com a ignorância e
o silenciamento da sociedade.
O conhecimento e o
diálogo são antídotos. É a velha história: o que não conhecemos, parece-nos
sempre muito mais afastado e na penumbra. Uma vez que tenhamos algumas
referências, não só teóricas, mas quanto mais pessoas puderem dar a cara e
tornar-se visíveis, começamos a normalizar.
E essa normalização é essencial…
Sim, assim como eu, que
estive nove anos para conseguir “pôr cá para fora”. Claro que há uma série de
passos a dar, há também uma série de vulnerabilidades. Era emigrante, depois
cheguei e não tinha trabalho, sou freelancer,
sou artista. Ou seja, vulnerabilidade atrás de vulnerabilidade. Sou mulher.
Podemos falar sobre isso. Mencionaste isso na
sessão: a mulher ser mais invisível. Porquê?
Até acrescentaria:
invisível e vulnerável. Há coisas que têm que ver sim com invisibilidade,
sempre muito atrelada a este discurso que se manteve durante muitos anos de que
existiriam grupos de risco. Hoje não falamos de grupos, mas de comportamentos
de risco. E, por exemplo, serão pouquíssimas as pessoas que nunca tiveram uma
relação sexual desprotegida.
Portanto sim, é a
invisibilidade dentro da invisibilidade, porque é como se o tema da mulher
acordasse outros temas, ligados com a sociedade católica e moralista em que
vivemos. O tema da mulher, por causa do patriarcado ainda decidir sobre o corpo
e a conduta da mulher, relacionado com o VIH é também desmantelar e
desconstruir isto que ainda é vigente.
A invisibilidade da
mulher também tem que ver com os estudos. Há um desconhecimento de como o
tratamento na realidade acontece no corpo da mulher, uma vez que se tem optado
por ter homens – muitos deles homens brancos – a ser a maioria da percentagem
dos estudos. E fiquei a saber disto muito recentemente. Um dos médicos que está a
trazer esta realidade mais humanizada para falar sobre VIH afirmou, numa
entrevista, que a quantidade de medicamento que circula no corpo das mulheres é
27% superior à dos homens.
Junto com isso, o facto
de a mulher não ter acesso à profilaxia pré-exposição porque o governo continua a não considerar as
mulheres como grupo de risco. Isso junta-se à vulnerabilidade. Hoje, apesar de
as mulheres serem cerca de metade das pessoas com VIH, continua a ser tabu.
Isto também por muitas das mulheres contraírem em relações extraconjugais e
existirem aqui dois tabus: VIH e traição.
Por último, também a invisibilidade
na ciência. O corpo da mulher gera vida, então devíamos ter prioridade em
perceber como podemos realmente ter um processo de conceção de forma saudável,
se podemos ou não amamentar, como é o comportamento da mulher que toma
retrovirais na menopausa…
Falaste já nesta conversa também nas referências –
de conhecer amigos ou conhecidos com VIH. Mas quão importante são também as
referências audiovisuais ou mais ‘populares’?
Pois… Uma pergunta que gostaria de deixar no ar: “Quantos filmes sobre VIH/SIDA já viste na tua vida?”. E
depois “Como é que essas pessoas eram retratadas dentro do filme?”.
Todo o audiovisual, seja
no cinema, seja agora pelas redes sociais e a forma como geram conteúdo, tem um
papel e temos aqui uma faca de dois gumes. Por um lado, espetacular. Porque
temos este discurso direto e a possibilidade de criar conteúdo e chegar a muito
mais gente. Por outro lado, é saber como o fazer.
E para mim foi muito
importante, e senti uma diferença. Ao início lidei com este diagnóstico de uma
forma muito solitária e ia fazendo pesquisas na internet, mas não encontrava
nada. Principalmente de outras mulheres e jovens. A maior parte da informação
que encontrava era de homossexuais ou trans, às vezes coisas muito
espalhafatosas. E não me identificava com nenhum exemplo.
Aí, novamente essa invisibilidade.
Sim, exatamente. E isso
começou a mudar, por volta de 2015, 2016. Não sei se terá estado relacionado
com o I = I (campanha “Indetetável é igual a Intransmissível”) que realmente inaugurou uma nova fase. Ou seja,
as pessoas já se sentiam mais confiantes, e menos monstros, peçonhentos, ameaças...
As coisas mudaram. Comecei
a descobrir mais referências, hoje estou sempre a descobrir coisas novas. E é
muito inspirador também.
Sobre conviver com o vírus. És bailarina e
professora de dança. Que papel teve a dança em lidar com o diagnóstico? E houve
dificuldades em trabalhar, em ‘ser aceite’ dentro da profissão?
Vou começar pelo início.
A dança, sim. Sem dúvida. Sempre foi na dança (mesmo que não o fizesse de forma terapêutica), onde fui encontrando esse espaço de expressão e de fluir. De ser uma língua, uma língua estrangeira que falo e cada vez que o faço me sinto mais eu.
A dança traz-nos para aquilo que é humano, ainda mais durante uma pandemia: seja
o corpo, sejam as emoções, o toque, o silêncio. São moVImentos para a vida e é
isso que a dança me tem trazido.
A partir de 2015, entendi
que precisava de usar tudo aquilo que estava a sentir para a criação. Não só
como um lugar para expressar e conter essa complexidade e momentos difíceis,
mas como laboratório de ideias novas. Já criei este solo [trabalho
da Teresa Fabião disponível online]
e estou agora no processo de seguir por outro caminho, através de uma oferta
comunitária que viaja por diferentes cidades. Estou ainda no passo 1. Vou
continuar a desenvolver projetos que cruzam estas grandes áreas, que eu acho
superimportante trabalharem juntas: a arte, a educação e a saúde.
Na sessão com os estudantes, vimos que a
experiência entre os anos 80 e 90 é muito distinta daquilo que seria uma
experiência agora. Mas ainda assim, sentes que ainda falta muita coisa para que
haja uma sensação de igual tratamento?
Apesar de eu dizer que as
coisas estão diferentes, um dos traumas mais pesados foi justamente a pessoa
que me deu o diagnóstico. Num centro de rastreio, em Braga, e a pessoa que me deu o diagnóstico tratou-me
assim de maneira muito desumana. Eu quase a desmaiar e ela naquela atitude de 'vamos lá, vamos lá, levante-se!'... Estive quase seis anos para recuperar desse choque.
Ou seja, apesar de no meu
discurso falar muito do progresso e da afirmação, ainda existem pessoas idiotas
como em qualquer lado.
Mas a nível de
acompanhamento médico, no Brasil ou em Portugal, tive muito boas experiências.
As duas médicas que mais me acompanharam em Portugal, gosto muito que sejam
mulheres, e tenho sido muito bem acompanhada.
Falaste muito, ao longo destes minutos, sobre a
necessidade de sensibilizar e consciencializar para estas questões - e esta
sessão inseriu-se numa aula com estudantes do 1.º ano. Que importância vês
neste contacto com realidades de pessoas que contraíram e vivem com VIH?
Acho mesmo importante dar
“fala” aos pacientes e entender que um processo de cura ou tratamento é sempre
um diálogo entre o médico e o paciente. Ou seja, desconstruir essa ideia de
“vou ao médico, ele diz-me o que fazer e ponho a minha vida nas mãos do médico”. O facto de
haver iniciativas em que há um discurso direto dado ao paciente lembra ao
médico ou futuro médico de que é um diálogo, é um trabalho de equipa.
E outro ponto é a
humanização. Por muito que façamos parte do sistema público de saúde, haver um
tempo para as consultas, não ser a despachar. Essa lembrança de tratar as
pessoas como seres humanos e perceber que o VIH é um tema muito complexo. Há
pessoas que se calhar só estou a ver a parte física, mas há outras a sofrer no
plano emocional e estão a ser discriminadas em casa, etc. Se o médico tiver uma
atitude recetiva, interessada e curiosa, de tentar contribuir e ajudar neste
processo, vai ser muito melhor para todos.
No fundo, é estares também
recetivo a aprender com o paciente. E seria extremamente vantajoso que
dinâmicas como a que gerámos hoje, fossem geradas para médicos já formados,
porque a complexidade do VIH e a própria vivência vai se mudando todos os anos.