sábado, 06/02/2021
Domtila Chesang é da
região de West Pokot, no Quénia. Num local onde a Mutilação Genital Feminina
ainda é uma prática comum, a queniana tornou-se um símbolo da luta pela
erradicação da mutilação genital feminina.
Em 2017, recebeu no Palácio de Buckingham uma distinção pelo seu trabalho junto das comunidades e das mulheres e meninas em risco: o prémio Queen’s Young Leaders, atribuído pela rainha de Inglaterra. Hoje, continua a ser uma destacada voz pelos direitos das mulheres e pelo fim de uma prática que coloca em risco mais de três milhões de raparigas todos os anos.
Uma tradição com papel central nalgumas comunidades, seja por convenção social, crença ou ideais culturais de feminilidade. Desde final do século passado que as Nações Unidas e a UNICEF procuram criar políticas para o fim desta prática através de monitorização, formação e envolvimento internacional. O Dia Internacional de Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina foi instituído em 2003.
Erradicar a Mutilação Genital Feminina (MGF) tem
sido uma longa luta. Como pesa o progresso feito desde 2003, quando as Nações
Unidas promoveram o Dia Internacional de Tolerância Zero para a Mutilação
Genital Feminina?
É verdade que o esforço
na MGF tem sido uma tarefa árdua, mas compensadora. Fizemos um longo caminho e
tenho orgulho em dizer que estou entre as primeiras beneficiadas pela primeira
conversa sobre MGF. Tinha atingido a “idade de corte” quando as primeiras
conversas para desafiar a MGF tinham acabado de surgir.
Posso dizer que escapei
por pouco e sobrevivi às consequências que vêm com ela. Se não fosse por esta
campanha eu teria sido mais uma vítima e esta história seria totalmente
diferente.
O progresso tem sido
lento, mas o facto de existir progresso é digno de celebração. A verdade é que não
tem sido fácil convencer comunidades a abandonar as suas práticas culturais
profundamente enraizadas e que nasceram com eles. A luta tem consumido mais
recursos comparativamente com o impacto que criou. Houve diversos fatores que
não foram ainda descobertos para que a MGF possa ser o centro das atenções.
A
MGF não é uma prática isolada, há vários aspetos que precisam de ser tratados
para que ela seja eliminada. E estes aspetos são o elefante na sala, a MGF é um
único problema, a pobreza é um exemplo, o acesso à educação outro. Ainda há
trabalho a ser feito.
O que está a faltar para conseguirmos acabar com
esta prática?
A MGF é uma violação dos
diretos humanos, não só dos direitos das mulheres e das raparigas. A questão é
quantas pessoas estão conscientes e aceitam esta verdade. Muito poucas, nem os
líderes africanos. Numa África construída, as mulheres são para ser vistas, não
ouvidas. As suas opiniões não contam e, infelizmente, elas também foram
educadas para acreditar e até apoiar esta narrativa.
É a mulher quem corta, é a
mulher quem estigmatiza as suas companheiras mulheres por não cumprirem a MGF.
São as mulheres que ainda acreditam que desafiar os estereótipos e as disparidades
de género é contra a própria mulher, contra as leis.
O lugar da mulher não é
na cozinha, mas é onde quer que ela queira estar.
O que falta fazer é uma
abordagem de empoderamento das mulheres em todos os setores. As mulheres
precisam de ser educadas, as mulheres precisam de ser politicamente,
economicamente e socialmente fortalecidas. As meninas precisam de ter igual
acesso a educação de qualidade. Os governos precisam de assegurar que as
políticas de proteção à criança não sejam apenas expostas num papel, mas sim
implementadas na prática. Eu penso mesmo que, especialmente os líderes africanos
por África ter sozinha o maior número de casos de MGF, precisam de levar o
assunto mais a sério e parar de ignorar os factos.
Cofundaste a “Kepsteno Rotwo” (Abandonem a Faca,
numa tradução aproximada), um projeto que pretende erradicar esta prática e que
está a trabalhar perto das comunidades, para sensibilizar quanto aos riscos e
aos problemas, bem como criando um espaço seguro para estas mulheres e meninas.
Como é que “despertaste” para esta necessidade e quão importante é para estas
comunidades passar a mensagem e alertar para os problemas causados pela MGF?
Eu fui motivada para
fazer o que faço pelo que testemunhei e continuo a testemunhar como resultado
desta prática. O que vi fazerem na minha prima, quando tinha apenas 11 anos,
mudou a minha vida. O auge da inumanidade, indignidade e desrespeito por humano
era de outro nível. Eu ainda não encontrei respostas para algumas questões.
Sempre me questionei como
é que o mundo ainda não brada com as atrocidades cometidas em miúdas.
Se a MGF
acontecesse no género oposto, continuaria a ser assim tão prevalente? Esta
raiva e a realidade no terreno continuam a motivar-me a acordar todos os dias e
salvar nem que seja uma desta meninas.
Estou a lutar numa
abordagem de baixo para cima, que é mais dura que qualquer outra. Tu deparas-te
com realidades e vários desafios no terreno. É um problema atrás do outro. Convences a tua comunidade a deixar as raparigas
serem raparigas e pararem de as mutilar. Alguns ouvem, mas depois não há dinheiro
para as levar à escola, que é a única alternativa. E as raparigas ficam desesperadas
sem nenhuma alternativa e não têm escolha se não voltar atrás, serem mutiladas,
de forma a poderem casar-se.
As raparigas que são fortalecidas [empowered] através de campanhas de sensibilização fogem de casa quando se
deparam com MGF forçada e depois não temos onde as colocar!
Tenho de descobrir onde
as deixar e, na maioria dos casos, ficam em minha casa, que agora é um abrigo
temporário. Mas depois disto vem o quê? As suas vidas devem continuar, têm de
ir à escola ou fazer algo com a vida delas. Onde é que conseguimos arranjar o dinheiro para
isto? É uma miríade de desafios.
Ao mesmo tempo, a
abordagem está a dar frutos lentamente. Só se começarmos a dar atenção a este
crescimento e empoderamento podemos acabar isto mais rapidamente, mais rápido
do que ficar a discutir a MGF em corredores.
Qual é a maior dificuldade em explicar às
comunidades o quão errado é?
Com as comunidades há um
número de coisas que podes e não podes dizer. É por isso que seja o que for que
faças tens de entender e respeitar as dinâmicas culturais. Por exemplo,
explicar à minha comunidade que a mulher tem direito a ter prazer sexual seria
considerado tão desrespeitoso e errado.
Alguma mensagem que queiras deixar nesta data?
O problema da Mutilação
Genital Feminina é maior do que imaginamos, mas é possível de gerir se
investirmos realmente na sua erradicação. Demorará algum tempo, claro, mas
seguramente conseguimos fazer melhor do que com estes passos lentos. A
paciência e a tolerância que testemunhamos no combate à Mutilação Genital
Feminina não se coaduna com a campanha cunhada de zero tolerância com a MGF.